terça-feira, 9 de março de 2010

O POVO CONTRA O GLOBO: Representação no Ministério Público diante da censura do jornal ao Manifesto

Numa articulação com ativistas sociais e intelectuais do Rio de Janeiro, a campanha Afirme-se! decidiu entrar com uma representação contra o jornal O Globo, do Rio de Janeiro. A ação, protocolada na tarde de segunda-feira, 8/3, no Ministério Público daquele Estado, foi preparada a partir de minuta do advogado Joao Fontoura Filho, que assiste na Bahia a coordenação nacional da campanha, que resolveu acionar a Justiça alegando que O Globo privou os seus leitores de ter acesso ao Manifesto publicado em outros jornais nacionais no dia 3 de março, no qual se afirma a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa e das cotas. Ressalta a ação a contradição de um jornal que diz defender a liberdade de expressão e que critica qualquer iniciativa de a sociedade criticá-lo vir agora censurar a sociedade civil, ao impor um valor absurdo para que esta emitisse o seu ponto de vista sobre um debate que está na pauta jornalística este ano.
A direção de O Globo, após apresentar uma tabela negociada de publicação ao valor de R$ 54.163,20 (dentro dos padrões de mercado obtidos pela agência Propeg), depois de ter acesso ao conteúdo do Manifesto decidiu que somente publicaria pelo valor irracional de R$ 712.608,00 !
A coordenação da campanha buscou solucionar o impasse nas 48 horas que antecederam a abertura das audiências no STF, enviando ao setor comercial de O Globo no Rio e a um dos seus diretores uma série de mensagens, não respondidas.
A representação é assinada pelos professores Alexandre do Nascimento, Rodrigo Guerón e pelo advogado André Magalhães Barros e quer o pronunciamento da Justiça. Já está sendo articulado um abaixo-assinado para ser anexado à ação nos próximos dias.



EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR SUBPROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS E FISCALIZAÇÃO



ALEXANDRE DO NASCIMENTO, brasileiro, solteiro, professor, IFP/RJ - 07726028-9 de 05/03/1991, residente na Rua Julio Berkowitz, S/N, lote 99A, Cabuis, Nilópolis-RJ, ANDRÉ MAGALHÃES BARROS, brasileiro, solteiro, advogado, OAB/RJ – 129773, com escritório na rua Senador Dantas n. 117, sala 610, Centro, Rio de Janeiro/RJ, e RODRIGO GUÉRON, brasileiro, solteiro, professor universitário, IFP/RJ 07157512-0, residente na Rua Marquês de São Vicente, 96, Bl `B`, apto 404, Gávea, Rio de Janeiro/RJ, vêm submeter à apreciação de Vossa Excelência a seguinte REPRESENTAÇÃO contra o JORNAL O GLOBO, pelos fatos e fundamentos seguintes:



Organizações não-governamentais e cidadãos em várias partes do país buscaram publicar, mediante compra de espaço de uma página inteira em jornais de grande circulação, um `Manifesto`, cujo objetivo central é divulgar a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa, das quais as cotas são um importante mecanismo.

Para alcançar os seus objetivos, desde o início de janeiro de 2010, articularam uma campanha nacional – denominada `Afirme-se!` - visando sensibilizar os brasileiros e arrecadar fundos para o pagamento dos custos da publicação do referido `Manifesto` nos jornais.

Dessa campanha resultou, inclusive, a adesão de uma agência profissional de publicidade, a `Propeg`, com sede em Salvador, cuja equipe assumiu a criação das peças de campanha, bem como as negociações com as empresas jornalísticas visando a veiculação do material.

Foi assim que a `Propeg` passou a negociar preços e prazos de pagamento com os veículos, durante a última semana do mês de fevereiro. A pretensão foi veicular o `Manifesto` nos jornais `Folha de S. Paulo`, `O Estado de S. Paulo`, `Correio Braziliense` e `O Globo`. Justifica-se a escolha desses jornais por seu forte poder de mercado e a pretensão de atingir os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal e suas equipes, vez que pautaram o debate sobre as cotas naquela corte, para se iniciar a partir do dia 3 de março de 2010.

Em sua negociação com o setor comercial dos referidos jornais, no dia 23 de fevereiro, a `Propeg` recebeu e apresentou ao cliente a planilha de custos dos preços de inserção do `Manifesto`, negociados em nome de uma Organização Não-Governamental, o `Omi-Dùdú`, para a qual seria faturado o débito. Conforme pode ser visto em troca de correspondência entre as partes (Anexo I), o setor comercial de `O Globo` enviou proposta de mídia naquele dia 23 de fevereiro, na qual se estabelece o custo de uma página (colorida) naquele jornal um valor negociado de até R$ 67.704,00, valor este ainda sem o abatimento da comissão de agência. Conforme pode ser visto no plano de mídia inicial (Anexo III), tal valor caiu para R$ 54.163,20, depois de abatido o percentual da agência de publicidade.

Entretanto, no dia 26 de fevereiro, depois que a `Propeg` enviou o anúncio criado “para análise da equipe editorial do jornal”, obedecendo a uma exigência do veículo, aquele valor saltou para absurdos R$ 712.608,00. A alegação de `O Globo` para tal alteração foi expressa nos seguintes termos: “o anúncio foi analisado pela diretoria e ficou definido que será `Expressão de Opinião`, pois, o seu conteúdo levou a esta decisão.”

Informe-se que o valor inicialmente cobrado pelo `O Globo` está dentro da tabela média cobrada no mercado de publicidade em jornais. Seria, portanto, realista e competitivo, sem resultar em nenhuma concessão ou abatimento excepcional. Isto pode ser demonstrado pelos valores cobrados para veiculação do mesmo anúncio pelos jornais `Folha de S. Paulo` (R$ 38.160,00), `O Estado de S. Paulo` (R$ 37.607,23) e outro, que decidimos incluir, `A Tarde` (R$ 36.048,48). (Anexo II).

Deve ser dito que, dos jornais mencionados, a `Folha de S. Paulo`, `O Estado de S. Paulo` e `O Globo` competem, no mercado editorial, em distribuição, circulação e influência nacionais. Em termos de linha editorial, esses três veículos são, nitidamente, contrários às cotas e às políticas de ação afirmativa. No entanto, diferentemente de `O Globo`, todos os demais aceitaram publicar o `Manifesto`, custeado pela sociedade civil por um preço comercialmente realista.

O `Manifesto` tem o objetivo de informar a sociedade a respeito da constitucionalidade das cotas – tão atacadas nos editoriais, artigos e comentários difundidos, entre outros, pelo jornal `O Globo`. No intuito de publicá-lo, um dos responsáveis pela campanha `Afirme-se!` tentou, fazendo uso dos canais oferecidos na página eletrônica do jornal, negociar com o setor comercial de `O Globo`, durante os dias 1 e 2 de março, sem obter qualquer resposta.

Se o `Manifesto` não for publicado no jornal `O Globo`, grande parte dos leitores do Rio de Janeiro e outras cidades do Brasil será prejudicada no acesso a essa informação. De forma alguma, a publicação do manifesto visa provocar quem quer que seja.

Conforme pode ser conferido no respectivo site institucional do Supremo Tribunal Federal, o ministro Ricardo Lewandowski designou para de 3 a 5 de março de 2010 a realização de audiência pública, a fim de ouvir interessados nas duas argüições judiciais sobre políticas de ação afirmativa adotadas por universidades brasileiras que lá tramitam, das quais Lewandowski é o relator: “O debate em questão consubstancia-se na constitucionalidade do sistema de reserva de vagas, baseado em critérios raciais, como forma de ação afirmativa de inclusão no ensino superior”, informa o Edital de Convocação da Audiência assinado pelo ministro. No referido debate, estarão em discussão:

1. uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF/186), de autoria do Partido Democratas (DEM), contra a Universidade de Brasilia (UnB) e seus responsáveis, por essa universidade adotar o sistema de cotas em seu vestibular.

2. um Recurso Extraordinário (RE/597285), de autoria de Giovane Pasqualito Fialho, contra a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que também adota o sistema de cotas em seu vestibular. O autor questiona o fato de ter obtido nota que o habilitaria a uma vaga naquela universidade, mas que, por conta das cotas, teria sido ocupada por outro candidato aprovado.

A audiência pública convocada por Lewandowski configura-se como um dos momentos cruciais para o futuro das políticas de ação afirmativa. Dela, deverão participar trinta e uma pessoas selecionadas pelo STF, para se manifestarem pró ou contra a constitucionalidade das ações afirmativas. Este projeto visa minorar o desequilíbrio existente, ao oferecer maior suporte midiático aos que são a favor das cotas, considerando que, na mídia, há uma diferença gritante no espaço que vem sendo dado aos que são contra essa política de ação afirmativa.

No Brasil, a tardia adoção de tais políticas, que vêm sendo implementadas, timidamente, há menos de uma década, por algumas instituições públicas, e mesmo privadas, em especial no campo da educação superior, tem sofrido ataques poderosos de setores da grande mídia.

Há uma verdadeira campanha que objetiva duas coisas: 1) extinguir, vetar, destruir as poucas iniciativas institucionais de ação afirmativa já existentes; 2) impedir, bloquear, derrotar qualquer possibilidade de implantação ou criação de novos instrumentos legais e institucionais de ação afirmativa.

Na hipótese de a maioria dos ministros do STF acatar, integralmente, o que a ação do DEM contra a UnB e o RE contra a UFRGS demandam, as políticas de ação afirmativa, executadas hoje por cerca de 80 instituições de ensino superior, deixarão de existir, impedindo que milhares de estudantes indígenas e afrodescendentes realizem suas expectativas de ingresso e conclusão do ensino superior.

Estão sob ameaça de se tornarem inconstitucionais o `Estatuto da Igualdade Racial`, que por 15 anos tramita entre a Câmara dos Deputados e o Senado, e demais projetos de lei, como o 73/99 incorporado ao projeto de lei 3.627/2004, do governo federal. Poderá ser declarado ilegal tudo o que estabelece políticas públicas compensatórias para setores da sociedade historicamente discriminados e excluídos

A campanha `Afirme-se` foi publicamente lançada entre a última semana de fevereiro e a primeira semana de março de 2010. E seguirá, num segundo momento, assim que for definida a data de discussão e votação do tema em plenário do Supremo Tribunal Federal.

A ação midiática proposta busca sensibilizar a maioria dos 11 ministros do STF para a justeza e para a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa já existentes, a favor de indígenas e afrodescendentes. Exemplos dessas políticas são: as cotas em universidades, a regularização de terras dos remanescentes dos quilombos, os programas especiais dos ministérios das Relações Exteriores e da Reforma Agrária, dentre outros.

No episódio em tela, além dos indícios de afronta ao Estado Democrático de Direito e aos fundamentos da República, diversos dispositivos constitucionais foram contrariados. Sendo comprovadas tais práticas e a finalidade de violar a Carta Política nos artigos abaixo elencados, os representantes esperam que medidas legais sejam tomadas pelo fiscal da lei:



``Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

…....

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V - o pluralismo político.

…......

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

…...

IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

…...

IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

…..

XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;

…..

CAPÍTULO V
DA COMUNICAÇÃO SOCIAL

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

§ 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

§ 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

…......

§ 5º - Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.

§ 6º - A publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade.

…......``



No âmbito doutrinário, destacamos a concepção de Daniel Sarmento, em “A Vinculação dos Particulares aos Direitos Fundamentais no Direito Comparado e no Brasil”, segundo a qual, a Constituição indica, como primeiro objetivo fundamental da nossa República, “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3º, I, CF), indicando que o modelo constitucional brasileiro se afastou da visão liberal de que o Estado é o único violador dos direitos fundamentais. A Constituição Federal de 1988 irradia, portanto, os seus princípios para todo o sistema jurídico, inclusive para as relações entre particulares, que devem estar vinculados aos Direitos Fundamentais garantidos constitucionalmente. Trata-se da denominada EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS, que recebeu acolhida no Supremo Tribunal Federal, na seguinte decisão:





STF, RE 201819 / RJ, Relator Min. ELLEN GRACIE, Relator p/ Acórdão Min. GILMAR MENDES, Julgamento: 11/10/2005, DJ 27-10-2006, Órgão Julgador: Segunda Turma

``As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados.

(...)

A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais.``





Pelo exposto, sendo apurados e comprovados, pelo Parquet, os fatos e os fortes indícios de práticas infrativas à liberdade de expressão e ao direito à informação, os representantes vêm requerer a Vossa Excelência que sejam tomadas as medidas legais.



Rio de Janeiro, 8 de março de 2010



ALEXANDRE NASCIMENTO

IFP/RJ – 07726028-9



ANDRÉ MAGALHÃES BARROS

OAB/RJ - 129773



RODRIGO GUÉRON

IFP/RJ 07157512-0

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