Durante três anos,
entre 2007 e 2010, o antropólogo Inácio Dias de Andrade manteve
convivência diária com os 7 mil habitantes da comunidade de Pinheirinho,
no estado de São Paulo. A pesquisa foi tema de seu mestrado na
Universidade de São Paulo. O que segue são seus relatos sobre o que ele
conheceu da auto-organização dessa comunidade que conquistou com as
próprias mãos o direito à moradia, e alguns fragmentos dos escombros que
a ação policial deixou para as quase 2 mil famílias despejadas da área
no dia 22 de janeiro.
São José dos Campos, São Paulo, Brasil. Existem
dois tipos de argumento que são largamente utilizados para justificar a
ação ilegítima do Governo do Estado de São Paulo no último domingo em
São José dos Campos, São Paulo, dia em que foram desalojadas cerca de
seis mil pessoas de suas casas.
O primeiro discurso tem um cunho moral,
construído por meio de estereótipos, e, através de rótulos de
“vagabundos” ou “bandidos”, insistem em impedir o acesso dessa população
a um de seus direitos básicos, o de moradia.
O segundo tipo de argumentação recorre a
um expediente legalista e judiciário para se sustentar. Segundo esse
pensamento, aquelas pessoas não tinham o documento de posse da terra,
portanto mereceram o tratamento recebido. Esse pensamento almeja um
patamar mais legítimo e racional. Foi cumprida apenas uma determinação
da justiça. Ponto.
Também, recorrentemente, essas
argumentações podem se conjugar. “Eram ladrões que pegaram uma terra
alheia. A Justiça fez apenas o seu papel”.
De qualquer modo, nenhum desses
pensamentos se justifica dentro do universo de um Estado de Direito, ao
qual o Brasil diz pertencer.
A primeira linha de pensamento poderia
ser desmontada com uma visita ao acampamento. Digo poderia, porque ele
não existe mais. A ideia corrente de que um bairro popular é sinônimo de
caos e crime é antiga e continua estampada nas nossas mídias atuais e
em pequenas conversas cotidianas.
Coberturas jornalísticas
hollywoodianas que colocam zonas pobres como “terras-sem-lei” ou
abandonadas pelo o Estado epela sociedade difundem essa impressão, que
também encontra bases retóricas estereotipadas em alguma conversa na
padaria ou no jantar com a família.
Convivi três anos com os moradores do
local e posso afirmar que, ao contrário do que se imagina, não havia
ausência de regras ou desordem de qualquer tipo. Muitos dos chamados
“ladrões” ou “vagabundos” cumpriam uma dupla jornada de trabalho. Após
trabalharem em seus empregos, que lhe garantiam seu sustento e de sua
família, organizavam reuniões, assembleias, mutirões e votações para
manter a ordem e paz no lugar, organizar o terreno e tomar decisões. O
terreno foi dividido, desde o inicio, em setores que podiam comportar um
número determinado de casas, evitando a superpopulação do local. Às
terças-feiras, cada setor se reunia, após o horário de trabalho dos
moradores – geralmente às seis da tarde. Nos sábados, no mesmo horário,
os moradores formavam uma Assembleia Geral, que contava com os
encaminhamentos feitos anteriormente em cada setor. O barracão onde
ocorria as Assembleias foi um dos primeiros a serem derrubados. Nesses
espaços de gestão democrática eram decididas as regras gerais de
convivência (maus tratos a mulheres e crianças poderiam resultar na
expulsão do agressor ou uma desavença entre vizinhos era sempre trazida
para a ponderação dos demais). Delimitava-se também, as zonas que seriam
destinadas à preservação ambiental, ao plantio de alimentos ou locais
de risco em que não se poderia construir casas. Além disso, nesses
locais, eram resolvidas questões relativas à segurança da população do
local e do entorno. Roubo, tráfico de drogas ou quaisquer outras
atividades ilícitas eram rigidamente controladas pelas lideranças e
moradores, pois todos estavam cientes que qualquer crime ocorrido no
local seria motivo para a criminalização de todo movimento. Durante
todos os anos de existência do acampamento não foi registrada uma morte
sequer no local. Ao invés de vagabundos, o movimento se constituía num
microcosmo de atuação democrática.
O segundo tipo de argumento ao que me
referia acima, utilizado amplamente pelo Estado, de que estaria apenas
cumprindo uma ordem judicial também pode ser facilmente alvo de
criticas. Realmente, a juíza Márcia Faria Loureira da 6ª Vara Cível de
São José dos Campos emitiu uma liminar permitindo a reintegração de
posse em julho do ano passado. No dia 18 de janeiro de 2012 às 4h20,
mais de 1.500 policiais se dirigiam ao Pinheirinho para cumprir a ordem
de reintegração, quando a Justiça Federal expediu uma nova liminar
suspendendo a operação. Em resumo, quando a desocupação foi posta em
prática existiam duas liminares contraditórias. Por lei, quando há um
conflito de competências entre esferas estaduais e federais, cabe a um
tribunal superior a análise e decisão sobre a legitimidade de cada
decisão. Esta decisão ocorreu na noite do dia 23, ou seja, quase 35
horas depois do início da retirada das famílias. Sob a ótica da Justiça
brasileira, a reintegração de posse ocorria de modo ilegal.
No entanto, a ilegitimidade da
reintegração e a ilegalidade das ações do governo paulista não estão
apenas dentro da esfera nacional. Vejamos como os moradores foram
abordados e como foram retirados.
Narrativas da ação
Estive na Igreja Nossa Senhora do
Perpétuo Socorro no dia 23 de Janeiro nas cercanias do acampamento, um
dia depois do inicio da operação policial. Uma multidão estava em volta
do terreno da Igreja e mais outros sem número de pessoa encontravam
dentro dela. Estavam deitadas no chão, calçadas, bancos, colchões
retirados de última hora ou emprestados. Estavam sem água ou comida
provisionada. E relatavam histórias atemorizantes sobre o dia anterior.
As notícias que chegavam davam conta de três a cinco mortes, incluindo a
de uma criança pequena. Embora essas mortes não tenham sido confirmadas
depois, o clima de confusão era grande, muitos ainda não tinham
encontrados seus parentes e a prefeitura não fez o cadastro de todos,
deixou essa atividade para o momento mais tenso da operação, montando
uma tenda de atendimento onde mais tarde estaria instaurada uma praça de
guerra. A revolta misturada com a tristeza de ver suas casas demolidas,
somava-se às feridas em seus corpos e à possibilidade de terem entes
queridos mortos, colocando todos num grave estado emocional. Estaria
desaparecido um senhor chamado Ivo Teles, que teria sido agredido e
algemado pelos policiais.
Os moradores haviam sido acordados
naquela manhã com os helicópteros, tropa de choque, gás de pimenta e
balas de borracha. Vídeos, fotos e testemunhos que correm na internet
mostram que policiais também usavam armas letais. Uma moradora me contou
que uma policial feminina chegou a sacar a arma para ela. Um morador
recebeu uma bala nas costas. A ação era totalmente inesperada, pois,
como dito, a última liminar da Justiça Federal ordenava que qualquer
ação de despejo deveria ser adiada por 15 dias. Essa foi a última
decisão tomada dentro dos trâmites legais e ninguém de dentro do
acampamento esperava que decisões judiciais seriam contornadas. Segundo
testemunhos que coletei, a polícia entrou de casa em casa retirando
famílias que tomavam o café da manhã ou ainda dormiam. De acordo com uma
moradora, dois policiais entraram em sua casa, jogaram-na para fora
enquanto atiravam os pratos de comida de seus filhos na parede, sob os
gritos: “Agora aqui é não é lugar de comer mais” ou “Estamos cumprindo
ordens” – ordem ilegal, diga-se de passagem, já que a última decisão da
Justiça era favorável aos moradores. Assustada, a ocupante me contou que
morou durante quatro anos na Rocinha, favela do Rio de Janeiro, a maior
da América Latina, “mas que nunca havia visto coisa parecida”. A
polícia do Rio de Janeiro ficou famosa pela sua truculência e
desrespeito aos direitos humanos nas últimas investidas na “guerra ao
tráfico”. Alguns veículos de mídia justificaram a ação da polícia de São
Paulo como uma “guerra à cracolândia”. Em três anos de visitas intensas
ao local nunca presenciei a produção, uso ou venda da droga. Outro
morador me relatou que depois de retirado de sua casa, viu sua mulher
tomar uma bala de borracha na cabeça enquanto segurava seu filho no
colo.
No centro de triagem da prefeitura, uma
das moradoras que se arriscou a ser cadastrada foi recebida com tiros de
bala de borracha no corpo e no dedo do pé. Existem vídeos na internet
também mostrando conflitos do abrigo da prefeitura. Muitos moradores se
recusam a receber o atendimento da prefeitura por medo. “Eu vou aceitar
ajuda de quem acaba de me expulsar de casa?”, dizia um morador. As
pessoas com quem conversei temiam ser separadas de suas famílias depois
de cadastradas. Pessoas contavam que após a triagem maridos eram
separados das esposas e os dois dos filhos. Não pude comprovar isso, mas
a apenas a existência do rumor e a credibilidade que ele ganha,
demonstra como foi tensa a tentativa de construção de um diálogo entre
moradores e o poder público.
A tenda erguida para comportar todos os
moradores é insuficiente. Se não fosse a recusa de grande parte da
população em ir para esse centro, justamente devido a essa desconfiança,
ele estaria superlotado e em piores situações.
Também houve denuncia de maus tratos na
região da Igreja. Moradores contam que a PM jogou bomba de gás por cima
do terreno para forçar os acampados a saírem, assim que estão na rua são
abordados pelos oficiais e muitos deles acabam presos. Essa tática de
confusão e reversão do papel de agressor/agredido também foi usada no
momento da desocupação e provou-se de grande valia para os PM. As
autoridades insistem em dizer que a reintegração foi pacífica. Uma
mulher, vizinha da Igreja, teria sido espancada por tentar conter o
abuso das autoridades. Depois de noites tensas naquele local, os
indivíduos não resistiram e seguiram para um centro poliesportivo
disponibilizado pela prefeitura. Foram quatro horas de caminhada até o
local designado, muitos passaram mal ou desmaiaram sob o sol forte.
Segundo notícias na imprensa, no ginásio do bairro Morumbi falta
colchões, mantimentos, produtos de limpeza e o ambiente não é
higienizado. A prefeitura não o limpa e nem permite que os moradores o
façam, já que não fornece material de limpeza. Muitos não conseguem
entrar no banheiro devido ao mau cheiro. Nas tendas, as pessoas passam
mal com o calor.
Os moradores também estavam sendo
impedidos de voltar as suas casas para recolher os seus pertences.
Diversas imagens veiculadas na Tv e nas redes sociais mostram escombros
com moveis de moradores no meio. Outras acompanham a demolição de casas,
sem a retirada das propriedades que estão ali dentro. A massa falida da
empresa Selecta S.A. contratou tratores privados para derrubar as casas
mais rapidamente, acabando com as posses acumuladas durante vidas
inteiras. Muitos deles ainda estavam com medo de saques ou da destruição
de seus bens, outros já haviam perdido tudo. Um morador gastou os 350
reais de seu salário como pedreiro em mantimentos para sua família (seis
pessoas, ao todo). Com a desocupação no domingo toda a comida estava
“confiscada” pela polícia.
Todo o consumo de sua família foi reduzido a
cinquenta reais que conseguiu economizar. Muitos estão sem documentos e
disseram que estavam sendo abordados constantemente pela PM em blitzs
montadas no entorno do local, sendo levados em seguida para a delegacia.
A contagem oficial de presos é agora de 22. Grande parte das pessoas
com quem falei não consegue nem sair para trabalhar, estão sem
documentos, sem carteira de trabalho e sem dinheiro. Campanhas de
arrecadação veem sendo feitas em todo Brasil.
As denúncias não param por ai: existem
acusações de sequestro e execuções. Embora nenhuma morte tenha sido
confirmada, a população teme no que novos confrontos possam resultar.
Embora mortes e sequestros sejam ainda
apenas rumores não confirmados, para um discurso dele se espalhar ele
tem que deter uma credibilidade onde é veiculado para que possa seguir
adiante. Se mortes e execuções pela PM não fossem fatos capazes de
acontecer, eles não teriam ganhado essa credibilidade na hora da ação e
não seriam ainda alvos de comentários uma semana depois. Pensar, como
muitos pensam, que a prefeitura, a juíza e o governo intencionalmente
entraram no local para bater e humilhar demonstra o grau de descolamento
que essas instituições ganharam desse povo e o tamanho da omissão e
falta de atendimento e diálogo presentes na relação entre moradores e as
diferentes esferas estatais. Se uma ideia dessa pode se espalhar tão
facilmente em tempos democráticos, esse é um indicativo do fato que
essas instituições ainda não estão totalmente acostumadas a lidar com a
concepção de democracia, depois de mais de trinta anos após o fim do
regime militar.
A ilegalidade da ação
O Brasil, como ator global que se
propõe, é signatário de diversos acordos internacionais que garantem o
tratamento humanitário e igualitário de todos os cidadãos sob seus
cuidados. O Brasil detém em relação às pessoas que estão sob seus
cuidados uma série de responsabilidades perante a comunidade
internacional.
Esses acordos preveem punições para os
membros que perpetuarem violações a dignidade humana, o que inclui
ameaça aos direitos civis ou políticos de seus nacionais, como o
direito à vida, à igualdade perante a lei e a liberdade de expressão,
direitos econômicos, sociais e culturais, tais como o direito ao
trabalho, segurança social (moradia entre eles) e educação, ou direitos
coletivos, como os direitos dedesenvolvimento (como uma politíca mínima
de habitação) e auto-determinação. Estes direitos são indivisíveis,
inter-relacionados e interdependentes.
Se podemos pensar que sob os olhos da
Justiça do Brasil essas pessoas tinham que sair daquela área, aos olhos
da comunidade internacional o Brasil, a o Estado e a polícia de São
Paulo e os juízes e executores envolvidos podem ser denunciados em
órgãos internacionais sob a acusação de desrespeitar uma série de
direito relativos à dignidade humana, aos principios democráticos e a
condição cidadã dessas pessoas.
A notoriedade da ação se dá pelo total
desrespeito a cidadania dessas pessoas dentro de um país que durante
trinta anos elege democraticamente seus representantes que deveriam
respeitar e vigiar pelo bem-estar da população sob sua guarda. A ação do
dia 22 de janeiro mostrou mais do uma negativa do Estado em oferecer
direitos básicos a uma parcela carente de sua população, a truculência
da reintegração é a própria expurgação desses direitos pelo o Estado
Brasileiro. A ação, antes de ser uma reintegração de posse, foi a total
obliteração de direitos básicos desses cidadãos e, mais do que isso, é
uma afirmação por parte do Estado brasileiro que certas pessoas
encontram-se fora da esfera da cidadania.
A prefeitura ao se negar negociar com
essas famílias – já que disse publicamente que só compareceria ao
encontro programado entre todos envolvidos se obrigada pela Justiça – se
absteve de suas funções legais de fornecer seguridade mínima para essa
população e confirma, de modo subliminar, que a população carente do
local nunca foi considerada habilitada para participar da cena política.
Essa quebra do Estado de Direito perpetuado de modo unilateral, abre
precedentes para uma segregação entre dois tipos de cidadãos. Aqueles
representados e os outros sem vozes.
O mais trágico de tudo é que estamos da cena política, os membros que ajudaram a implementar o ideal participativo no país.
O cume da redemocratização no país,
simbolizada na constituição de 1988, estendeu direitos sociais e
políticos a uma imensa massa no país e, mais do que isso, colocou no
imaginário popular a ideia de um “cidadão de direitos”. Isso se deu, em
boa parte, porque movimentos sociais dos quais o Pinheirinho descende
fez um enorme esforço na década de 80 para contruir no imáginário de
grande parte dos brasieiros a noção de “sujeito de direitos” –categoria
utilizada inclusive pela imensa maioria que critica os sem-teto através
de expedientes jurídicos. A noção de que o Estado, em todos os seus
níveis, é responsável pelo bem estar de todos os seus cidadãos é
originário de um enorme esforço dos novos movimentos sociais do período
da redemocratização Se hoje encontramos formas de mobilização e
reivindicação de nossos direitos em diversas arenas, novas ou velhas,
isso se dá porque tais movimentos sociais conseguiram construir um
espaço legítimo de expressão democrática desses direitos, nos tribunais e
nas ruas. Desse modo, somos todos, de alguma forma, devedores deste
tipo de movimento quando, por qualquer motivo, reclamamos nossa condição
de cidadão frente ao Estado.
Assim sendo, a indisposição da
prefeitura para o diálogo e a imensa força de repressão chamada
demonstram o total desconhecimento por parte do poder público do jogo
democrático e reforçar a tese de descaso, omissão e repressão de
direitos.
Segundo leis estatuídas, a população
deveria ser avisada com antecedência necessária de qualquer reintegração
de posse, deveria ter tempo hábil para retirar suas coisas, deveria ter
o direito a ser encaminhada em condições humanitárias a abrigos
apropriados. Não poderia jamais ser submetida a tratamentos cruéis ou
degradantes, como vista na abordagem da PM. Ninguem pode ser privado de
sua identidade jurídica, ser impedido de se identificar ou ser preso
arbitrariamente devido a esse fato.Durante a desocupação deveriam estar
presentes os Conselhos Tutelares, Centros de Referência de Assistência
Social, o Conselho de Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente,
além de serviços de saúde e educação. Nao houve qualquer aparato
montado pela Prefeitura. As assistentes sociais presentes no local
também não sabem como a bolsa-aluguel da prefeitura vai funcionar. Só na
quarta-feira dia 1/02 essas pessoas saberão que documentos precisarão
para conseguir o auxilio. Muitos não sabem se conseguirão, já que grande
parte dos moradores perderam seus documentos.
Uma mulher tem apenas a
carteirinha de vacinação da filha. A prefeitura, notadamente, não se
preocupou com o destino dessas pessoas no pós-desalojo. O Condepe /SP
(Conselho Estadualde Defesa dos Direitos Da Pesssoa Humana) está no
local averiguando o uso de força abusiva, a existência de abusos e as
denenúcias de desaparecidos e mortos.
Leis internacionais da Organização dos
Estados Americanos (OEA) e Organização das Nações Unidas preveem
dispositivos para que pessoas privadas de seus direitos políticos possam
recorrer a essas esferas. Se a prefeitura de São José tem sido omissa,
é direito dessas populações procurarem um órgão representativo na
comunidade internacional. A relatora para habitação no Brasil nas Nações
Unidas já se pronunciou contra a atuação da PM.
Na realidade, o conflito pode até mesmo
ser denunciado como uma crise humanitária, semelhante ao de países em
conflitos armados. Os moradores do Pinheirinho são refugiados em
trânsito dentro do país. Não há razões para não configurar o que
aconteceu em São José dos Campos como uma crise humanitária. O Brasil é
signatário do Direito Humanitário Internacional ou o Direito
Internacional dos Conflitos Armados (DICA) Agência das Nações Unidas
para os Refugiados (ACNUR). O que aconteceu no domingo foi o caso de um
deslocamento de população interna, comparável com as grandes retiradas
de populações no Oriente Médio, área de intenso conflito étnico. As
pessoas afetadas por essa atuação estatal são classificadas como
deslocados internos que fogem de seu local de origem por razões
semelhantes às dos refugiados de conflito armado, violência
generalizada, violações de direitos humanos, legalmente os deslocados
internos permanecem sob a proteção de seu próprio governo, embora o
mesmo governo seja a causa da sua fuga. São cidadãos e mantêm todos os
seus direitos e são protegidos pelo direito dos direitos humanos e o
direito internacional humanitário definidos com base na Convenção de
Genebra e Convenção de Haia. Segundo a ACNUR, os feridos ou doentes
devem ser acolhidos e tratados pela parte do conflito que os tiver sob
seu poder. Fato não ocorrido no Pinheirinho, haja vista as condições
insalubres a que estão expostos.
É triste constatar que os moradores do
Pinheirinho, por serem cidadãos de segunda classe, são obrigados a usar
de outros membros da sociedade civil para serem ouvidos e cabe a
sociedade civil cobrar das instituições o retorno ao Estado de Direito.
A disputa pelo conceito de Justiça
São José dos Campos conta com um déficit
habitacional de 27 mil famílias. A região onde o Pinheirinho se
encontra foi contemplada com construção de 524 casas até 2011 em quase
dez anos de políticas habitacionais da prefeitura. Segundo o PNUD, órgão
das Nações Unidas para o Desenvolvimento, em 2000, São José contava com
uma população de seis mil pessoas vivendo em condições subnormais de
habitação. Em 2011, num domingo, em apenas um dia, em apenas uma área da
cidade, cerca de seis mil pessoas perderam suas casas no Pinheirinho.
Durante toda minha pesquisa, nenhum dos
interlocutores com os quais falei hesitou em responder onde e quando
começou o Pinheirinho e todos são capazes, por memórias próprias ou de
outros, de vincular o início do movimento à “ocupação das casinhas do
CDHU”, no Campo dos Alemães, em 2003. No discurso dos moradores, das
lideranças e dos indivíduos ligados ao sistema jurídico e partidário que
suporta o movimento, as “casinhas” aparecem sempre com uma referência
para o começo do processo de “luta”. A ocupação das casas sempre foi
justificada pela má qualidade em que se encontravam e pela demora na
conclusão e entrega para a população carente, situação agravada ainda
pelo fato de muitos ocupantes dizerem já estar na fila para conseguir
uma casa na prefeitura há mais de oito ou dez anos. Para alguns
moradores, as “casinhas” aparecem relacionadas à época de Natal e Ano
Novo e aos vínculos familiares e emotivos que representam; outros, como
os advogados da causa as mencionam como o começo de um grande e complexo
processo que se arrasta até hoje, no qual cabe “uma série de recursos” e
onde “a memória pode até falhar”; outras pessoas ainda as veem como o
início de um processo de resistência contra âmbitos municipais,
estaduais ou federais de poder, injustos e parciais, ou contra uma fatia
abastada e privilegiada da população brasileira ou da mundial.
Muitas críticas são feitas à resistência
dos moradores em sair ou na justeza de sua reivindicação, já que é a
terra não seria deles. Primeiro precisa-se problematizar a noção de
justiça para essas pessoas A posse do terreno é associada à figura de
Naji Nahas e da Selecta, também ligados as figuras de Celso Pitta e
Daniel Dantas, devido ao desvio de verbas públicas amplamente divulgado
na mídia, amplamente notório na Operação Satiagraha da Polícia Federal
em 2008. É bom lembrar que Naji Nahas só foi absolvido recentemente da
acusação de quebra do sistema financeiro em 1989 e a compra de juízes é
uma das acusações feitas pela PF na operação Satiagraha.
Em assembleias dos moradores, foi
lembrada mais de uma vez a ocasião do casamento da filha de Naji Nahas
que haveria custado mais de um milhão de reais e contado com um
fretamento de um avião para os convidados. Sua figura, em reuniões,
sempre aparece como uma pessoa de altas posses que estaria prejudicando
os menos favorecidos. A figura da Justiça aqui aparece sempre do lado
dessas pessoas de posses, vista como grande homens de negócios vestidos
em seus ternos, e sendo que a noção de justiça sempre é algo quase
inalcançável para essas populações. Esta visão de mundo popular é
constatada por cientistas sociais há quase quatro décadas. E em relação a
esse ponto, pode-se dizer que em pouco avançamos. Por isso que, de
acordo com os sem-teto, é sempre “necessário lutar”. É triste perceber
que a ação de domingo só reforçou essa percepção nesses moradores.
É ainda pior constatar que além de
muitas vezes estas pessoas são colocadas de fora do jogo político legal,
quando elas são vistas forçadas a reagir são vistas como “fora-da-lei”.
Por que, apesar dessa visão, Os
moradores do Pinheirinho não se constituem numa massa de bandidos que se
julgam acima da lei, mas por conhecê-la bem exigem o seu cumprimento. A
decisão da juíza Márcia Faria Loureira, exibe uma interpretação da lei
possível, mas não mostra o conteúdo inteiro de uma constituição que
movimentos como do Pinheirinho ajudaram a formar. A exigência dos
moradores da transformação de um terreno sem função social – cujo dono é
réu em uma investigação da Policia Federal – numa Zeis (Zona Especial
de Interesse Social), regulamentada por uma série de leis que a juíza
escolheu ignorar, é uma reivindicação mais que razoável, mas justa e
necessária, já que, como a imprensa já noticiou, São José sofre a anos
de um déficit habitacional, que a prefeitura insiste em contornar com
politica paliativas.
Dito isso, faz-se necessário dizer que
os moradores do local não procuram viver na ilegalidade, estão dispostos
com essa mudança a pagar IPTU, água, luz e todas as demais taxas
municipais. Ao contrário do que se pensa, eles não querem viver
privilegiadamente, eles querem ser inseridos numa ordem urbana que
sempre lhes foi desfavorável.
Partidarização do Conflito
Em muitas mídias, a tentativa era de associar aos diversos lados em conflito, siglas partidárias, ainda mais num ano eleitoral.
As acusações são de truculência do
governo paulista, omissão ou intromissão do governo federal (dependendo
do viés da matéria) ou radicalização por parte do PSTU.
O simplismo em que esse debate cai,
infelizmente, também ajuda a ignorar a realidade dessas pessoas e
excluí-las do jogo político democrático.
Obviamente sempre houve mediações
partidárias dentro e fora do acampamento, pelas mais diferentes siglas.
No entanto, não podemos pensar que essas pessoas eram militantes do PSTU
ou controladas por membros da esquerda nacional. À título de exemplo,
podemos nos remeter as eleições municipais de 2008. Nessas eleições,
Marrom, líder do movimento e membro do PSTU, saiu candidato a vereador.
Estimativas da população do local variam entre 6 mil a 9 mil e, em como
todo o bairro, sofre flutuações. Naquela época as estimativas rodavam a
casa dos oito mil habitantes, naquele ano Marrom recebeu 1.792 votos ou
0,54% do total. Considerando que o PSTU também tem atuação politica em
outros setores e contando com uma população de 8 mil pessoa do
Pinheirinho, dá para se perceber que grande parte dos habitantes não era
necessariamente vinculada ideologicamente ao partido.
A ajuda essencial que o partido
proporcionava era a de dar vazão ao sentimento de “revolta” dessas
pessoas quando são obrigadas a se deparar com a parte da sociedade que
detém dinheiro e o poder. O partido fornece meios a essas pessoas para
lidar com essas percepção de injustiça na sociedade brasileira. No
entanto, os meios são essencialmente institucionais. O partido fornece
acompanhamento jurídico para essas pessoas, cadastramento, oportunidades
de cursos técnicos, acesso à programas governamentais de ajuda. O
partido é um facilitador que recorre a identidade cidadã dessas pessoas
para buscar os seus direitos dentro da esfera pública. Além do mais, nem
todas as liderança do local eram vinculadas ao PSTU ou outro partido. A
coordenação da área contava com reuniões semanais entre as lideranças,
entre as lideranças e os moradores do setor, com assembleias gerais e
procedimentos burocráticos que escapavam do comando do partido.
A coordenação do Pinheirinho esteve em
Brasília no dia 7 de janeiro de 2005 para tentar um posicionamento do
governo federal frente à sua causa, já que enfrentavam a decisão da
Justiça, que ordenava a reintegração de posse da área. A comitiva foi
formada por Marrom, pelo advogado e presidente do PSTU de São José dos
Campos, Antônio Donizete Ferreira, o “Toninho” e pelo ex-deputado
federal e assessor político do Sindicato dos Metalúrgicos de São José
dos Campos, Ernesto Gradella Neto. Houve reuniões na Secretaria Geral da
Presidência da República e no Ministério das Cidades e a comitiva ainda
agendou encontros na Casa Civil, no Ministério da Justiça e na
Secretaria de Direitos Humanos, o que resultou no acompanhamento do caso
pela CDDPH (Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana), órgão
ligado à Secretaria Especial de Direitos Humanos do governo federal. Em
2005, um ônibus levou-os moradores até Porto Alegre para a edição do
Fórum Social Mundial daquele ano. A intenção era, segundo noticiou um
jornal local, segundo Marrom, buscar “(…) apoio político e orientação
jurídica, já que estarão presentes representantes de ONG’s
internacionais” (Vale Paraibano, 20/1/2005). Obviamente, que havia apoio
político do PSTU e de seus membros, mas esse apoio era feito com a
mobilização das arenas políticas legítimas e se houve resistência na
reintegração, ela só pode ser justificada por um sentimento comum a
maioria das classes populares do país: as de que estão sendo
“injustiçadas”, fato que lhes ocasiona o sentimento de “revolta”. Além
do mais, recorrer a explicações simplistas de que essas pessoas eram
manipuladas pelo PSTU é ignorar a consciência política delas e suas
experiências passadas com movimentos sociais e esconder décadas de mau
planejamento habitacional dentro de uma questão partidária.
Logicamente isso demandava esforços
pessoais e financeiros. O que alguns jornalistas chamam de “imposto”
Pinheirinho tratava-se de uma contribuição de dez reais para o Movimento
pagar todos esses trâmites. Era semelhante a uma taxa de qualquer
condomínio, com uma diferença: era opcional. Houve acusações de vendas
de casas por algumas lideranças, eu presenciei o debate entorno a esse
fato, que acabou com a expulsão, por unanimidade, da mesma do local.
“Passar casa”, como se dizia, era intolerável, já que muitas pessoas
estavam de fora do Pinheirinho também esperando por um terreno lá
dentro.
Toda a movimentação institucional que
ocorreu, por iniciativa dos moradores e com apoiada pelo PSTU, foi o que
levou o governo federal declarar interesse na área. Os moradores
conseguiram um novo canal de dialogo, mas que seria interrompido
bruscamente. A entrada do Governo Federal no assunto ocasionou a batalha
jurídica e a guerra de liminares e um canal aberto para resolver um
problema social, ganhou contornos políticos dramático naquela manhã de
domingo.
Soltou-se também na mídia que o PSTU
teria barrado negociações com a Terra Nova, empresa que queria urbanizar
a área. As negociações não avançaram pois cada unidade habitacional
financiada pela empresa custava cerca de 80 mil reais, sendo que as
construções de casas pelo meio de mutirão no local não passava de 15 mil
reais. As promessas feitas pela empresa não eram compatíveis com a
realidade dos moradores. Essa ideia foi corroborada quando foi noticiado
o caso do Jardim Pantanal, em São Paulo, que foi construído pela
empresa com ajuda da prefeitura da cidade numa várzea de rio e passou
mais de um mês alagado no período das chuvas.
Em relação à municipalidade, os
moradores sempre reclamaram da “falta de vontade política”, já que nunca
foram recebidos pelo prefeito e as poucas visitas que a base aliada da
prefeitura fez ao local foram vistas como “encenação”, já que nada se
resolveu.
É fácil notar de onde vem a insatisfação
desses moradores e essa visão sobre como as coisas são, mesmo porque o
sentimento de “revolta” que esse moradores experimentavam, e ainda
experimentam, não é fruto de uma ideologia do partido, mas sim de seus
contatos cotidiano com o mundo em que trabalham, em que vivem e por
todas as relações sociais em que estão envoltos e que sempre lhes são
desfavoráveis. O preconceito com o qual esses moradores estão
acostumados a lidar fornecem eixos que declaram seu lugar no mundo, como
um subcidadão, alguém se expressão politica, enfim, “era apenas mais um
morador do Pinheirinho”. E hoje sem casa ou endereço.